Morangos Silvestres



É verdade, meu amigo, que a morte não é esta cidade deserta com as janelas de todos os prédios entaipadas. Os nossos passos não ressoam no vazio de todas as ruas desertas sem ninguém. E as portas não estão todas fechadas. Na morte, o nosso sobretudo não nos pesa. A morte não é o relógio sem ponteiros que marca o tempo sem tempo de toda a eternidade. Meu amigo, consola-te. A morte não é a cidade de Hiroshima em escombros, nem o silêncio de tudo o que está morto e não mais respirará nem falará. Sonhas que a morte é o único habitante da cidade silenciosa e deserta dos teus medos, mas ela não é esse homem que está de costas. O seu rosto não tem olhos, nem boca, nem nariz, nem nada de humano que fale contigo. Que rosto tremendo!... Mas não é verdade. É só um mau sonho, meu amigo. Agora estás muito velho e gostarias de ser embalado como aconteceu há tanto tempo, nos braços de tua mãe?... Agora que andas tão devagar é que tens saudades de tudo o que te aconteceu?... Que forte que é o desejo de que as nossas mães não se tornem empedernidas como granito e opacas como a escuridão!... Mas garanto-te que a morte não é o carro fúnebre que avança sem condutor, com cavalos que correm às cegas. Tens medo que não haja ninguém para te chorar?... Chegou a tua hora, e morres sozinho?... Morre-se sempre sozinho, mas pelo menos não serás enterrado vivo dentro de um caixão forrado de seda. Ninguém quer ser enterrado enquanto estiver vivo. Meu amigo, garanto-te que a morte não é esse terrível tribunal onde descobrimos que nunca aprendemos nada, que tudo o que fizemos foi errado e em que agora as mulheres e os homens que nos desampararam e traíram por toda a eternidade se riem de nós. Não estamos assim tão desamparados diante de toda a crueldade do universo, nem seremos eternamente humilhados nas nossas fraquezas infinitas. 
 
Consola-te, meu amigo.

Porque a morte é só a visão eterna, intacta, cristalina, de tudo o que mais amámos na vida com a mais pura esperança e alegria. Essa rapariga, esse rapaz, essa criança, esse lago e até os morangos silvestres da nossa infância, essa pacata e breve cena doméstica em que fomos as discretas e humildes testemunhas do amor dos nossos pais.
 
Nessa visão é que iremos um dia como num barco à vela, uma nave muito antiga e milenar, nós, os passageiros beatos, pela espuma inefável da vida eterna.